4
O pai morreu na Terra. O coração que há anos batia contrariado, parou.
Andava a semear trigo.
Uns caçadores encontraram-no, deitado de bruços, com a boca cheia de terra e as unhas cravadas no chão vermelho.
As velhas vieram dar-lhe a notícia à escola. Pranteavam tingidas de preto e de mágoas que não eram suas. Catarina esbugalhou os olhos, e deixou-se levar por aquelas mãos frias de corvos.
Paramentaram-na de negro da cabeça aos pés, enquanto lhe rezavam a excelência do defunto, como pai, marido, trabalhador aguçoso e amigo inteiro.
Os lamuriosos ais, lembravam a Catarina os balidos das vacas a parir em noites de tempestade, e não conseguia deslindar se sentia mais dó do pai morto, estendido no caixão de pinho, ou das velhas que de desfaziam em caudais de água doce.
Para Catarina o pai nunca fora vivo. A única diferença era que antes estava morto dentro da carcaça que era o seu corpo, e agora estava morto dentro daquele caixote de madeira ruim.
Por isso, não sentia mais tristeza, ou queixume, nem menos. Os dias continuaram como até aí, na mesma cadência de passos vazios e silêncios.
Esta falta de reacção, foi tomada por desprendimento por uns, outros houve que asseguraram de imediato a insanidade mental da criança.
As velhas agarraram nela, e sob a secreta mas ténue esperança de verem ali uma rapariga, levaram-na pra casa, e induziram-lhe uma formação intensiva lançando Catarina num corrupio de tarefas que cintavam mais as suas angustias, e agigantavam o nó de revolta que lhe engasgava as horas.
5
A adolescência chegou em bicos de pés, sem avisos, e, o animal que as velhas alimentaram e criaram dentro do peito de Catarina, cresceu e preparava-se para desferir todo o veneno destilado numa dose única de abandono.
Aos 12 anos, pegou na trouxa negra que adoptara como uniforme, e foi-se tão de repente como tinha chegado.
Regressou ao campo, regressou à vida. Dormia debaixo das copas das árvores, por cima do chão húmido que a chamava como antes quando era ainda uma semente enraizada e forte.
Tornou-se implacável como as estações do ano, sempre a fazer o que queria, quando queria, e quase sem dar por isso, foi largando a pele de serpente escorregadia aos pedaços debaixo dos seus pés.
A emulsão de pés de vento foi tomando forma, e com a força brutal de uma trovoada de Maio, a rapariguinha esguia e seca, deu lugar a um ser diferente, feito de contornos reais e carnudos, que primeiro a amedrontaram e quase em simultâneo lhe deram a noção do tamanho da fúria que ardia nos olhos dos homens.
E o seu campo era também o seu corpo. E a sua cama era também a dos homens que vinham em busca de relâmpagos gemidos no meio do pasto alto.
E Catarina viveu de trocas que deixavam na boca o travo azedo do campo vazio.
Os olhares de espanto e perguntas eram já olhares de raiva mal contida nas palavras ditas em surdina.
Era virtuosa nos corpos dos homens, era bruxa na boca das mulheres, era puta nas vozes ecoadas na vila.
A terra fria de Novembro, acordou-lhe a dureza da vida e asfixiou-lhe o ensejo de voar mais alto. A simplicidade dos dias de outrora, desvanecia-se no mundo, e Catarina cada vez mais vezes aquecia as mãos na fogueira baça da solidão.
O frio que lhe vinha de dentro, ameaçava tomar conta do astro, e transformar em gelo todos os seres que olhassem a imagem negra curvada como um junco num charco ao fim de uma semana de chuva.
Já sabia de cor as ervas que expulsavam almas inocentes do seu corpo doído, conhecia como a palma da mão, a toca onde se acocorava em banhos de sal e sangue, e de onde saia mais vazia, mais pálida, quase uma sombra.
Mas as sombras crescem com a claridade, e inundam os caminhos de cabras ao pôr do sol.
As sombras acolhem os males e afagam as vinganças.
(continua...brevemente...)
imagem deviantTART