Hoje vou falar um bocadinho da minha terra.
Não propriamente para exaltar as suas conhecidas belezas, mas porque me lembrei de dias que ficaram pra trás, e que nestas datas nos trazem alguma saudável nostalgia.
Hoje é dia de S. Martinho, é dia de, conforme manda a proverbial tradição "ir à adega e provar o vinho". As uvas colhidas em Setembro, maceraram o suficiente para nesta altura se poder provar um ainda áspero mas já temperamental vinho, mais o branco, que matura mais rapidamente , mas para os corajosos, também o tinto.
No entanto, é razão para se dizer que também para o Santinho que elogia o Outono e a riqueza dos campos, a tradição já não é o que era. A minha antiga e vistosa vila cheia de pequenas adegas com vinificação própria, cheia de cantares ao fim da tarde, quando o vinho novo já gozava nas tascas, deu agora lugar a uma bonita mas envergonhada cidade, onde o esforço da modernidade tem aos poucos decepado anos e anos de estórias que já só podemos ver nas memórias faladas de alguns poucos.
Ainda me lembro bem, do cheiro das adegas...
Apesar do acesso a estes círculos não estar vedado às mulheres, não era hábito ver alguma por lá.
Mas no dia de provar o vinho, lá na escola, enchíamos o peito, grupos de rapazes e raparigas e aventurávamo-nos de taberna em taberna, às vezes, como era o meu caso, só pra entrar e molhar os lábios no azedo do liquido.
Havia cacholeira assada, e castanhas, e batata doce, e nacos de pão e queijo de ovelha curado e a saber a cardos. Havia tilintar de copos de vidro, e homens rudes de mãos grossas e voz moura e quente.
Cheirava ainda a mosto, e a humidade, um daqueles cheiros que chega pra dar vida a um morto. Os balcões eram negros, de madeiras puídas e velhas que estavam gastas de tanto beber. A música de odores, paladares e sons entrava-nos mal passávamos a porta da entrada e permanecia muito pra lá da despedida.
Havia o Julião, o Cagão , o Zé de Sousa, o Chico Brites, e tantas outras tabernas que se enchiam de cantares e rimas de improviso neste meado de Novembro.
Nas portas onde antes moravam os generosos jorros de vinho novo, estão agora lojas de artigos orientais, e outras quinquilharias que vão apagando do mapa de Reguengos todos os vestígios de antes.
Nem sei se alguma taberna digna desse nome existe ainda nas ruas da cidade. Existem Adegas /Restaurantes, aos montes, rústicos qb , decorados de artefactos alentejanos, com ementas cheias de porco preto e migas e açordas, porque é fino, mas não têm, não podem ter a aureola de autenticidade entranhada nelas.
Há poucos dias, o meu filho, veio perguntar-me se eu conhecia lendas Alentejanas. Eu lá lhe falei de umas quantas que ouvia contar desde sempre, umas que estão nos livros, outras que só estão nas velhas e nas ruas.
Hoje, neste S. Martinho, estou aqui sentada, a escrever sobre a vivência desta data aqui, e vieram-me à lembrança alguns bêbedos, que já não estão entre nós, e hoje até parecem lendas, o Papa Cachola, homem rude e grosseiro, que em novo manteve uma paixão assolapada por uma jovem, que a dias de consumar o casamento renunciou ao amor terreno e se entregou nos braços de Deus, entrando para um convento, o Papa Cachola, lá foi afogando as mágoas com muito vinho ao longo de toda a sua vida, até que um dia, decidiu fazer as pazes com O lá de Cima, e resolveu ir a pé a Fátima com um grupo de peregrinos cá da terra, por ocasião do 13 de Maio. Rezam os que assistiram, que o bom do homem, quase no termo da caminhada, quis pôr também termo à sua vida, saltando de uma ponte. Mas ao ver que o rio estava seco, e que lá abaixo o que havia era um monte de pedras e pedregulhos, resolveu que seria demasiado doloroso, e lá prosseguiu até ao fim da jornada, sempre acompanhado pelo seu fiel companheiro de todas as lutas: o tinto.
Outro era o Salinhas, se não me engano era pintor de profissão, e versejador de todos os dias e copos. Apesar das rimas pouco felizes, era um homem sempre bem disposto, fruto especialmente das suas "rezas" em todas as muitas "capelinhas" da vila.
Conta-se que uma noite em plena praça do Papança , gritava de peito aberto: "Esta noite, nã me dêto !!" no mesmo instante aparece uma patrulha da GNR local, ao que ele continua dizendo "mesm'agora me vô dêtari !"
Bem, agora pra afogar a nostalgia destas lembranças, vou comer castanhas assadas, e beber um copito de tinto.
Boas Noites
Imagem: Fotos Sapo