Gabriel queria voar.
Era mais que um sonho. Era uma vontade que o perseguia e lhe norteava os dias.
Não sabia bem como, nem quando tinha começado aquela fixação , a que os outros chamavam mania. Para ele era quase uma marca genética . Ele era um pássaro sem asas.
Quando era criança pequena, ainda lá na terra, a mãe costumava vesti-lo de anjinho, por altura da procissão da Sra. da Boanova . Era logo depois da Páscoa, quando as estações do ano se debatem, e os céus incham de água e electricidade. Sorria sempre que recordava aquelas caminhadas, tantas vezes debaixo do ribombar dos trovões, e por cima de um chão de terra lamacenta, que ensopava as bainhas das imaculadas túnicas brancas da legião de pequenos anjinhos.
A mãe, vestia-lhe aquela opa branca pela cabeça. Leve e a cheirar a bolas de naftalina, dava-lhe uma dobra nas mangas compridas, para estas não chegarem à chama da vela, e com aquelas mãos sábias, atava-lhe à cinta um cordão grosso de cetim cor de pérola, e tufava bem o tecido, de molde a evitar tropeções e quedas.
Por fim, lá vinha a melhor parte, a mais aguardada por ele. A mãe colocava-lhe às costas, presas por grossas tiras de tecido de sarja forradas a tafetá brilhante, umas asas....
umas asas de finas penas brancas como a neve nos postais de Natal, que a Tia Ludovina mandava da Suíça !
As asas de penas brancas, eram pesadas e pouco confortáveis, mas para Gabriel, eram o ponto forte de todo aquele aparato. Ele tinha umas asas! Não atingia, como podiam os pássaros voar com umas asas assim, tão pesadas! Mas um dia ele também seria capaz!
Quando o S. Pedro se zangava, dizia a mãe, vinham a chuva e a trovoada, estragar a festa. A procissão desenrolava-se em passo apressado, os fieis corriam atrás dos andores, e as imagens dos santos chegavam ao santuário, cambaleantes , desalinhadas, e encharcadas.
As crianças logo atrás do andor da Santa e do Pároco da Freguesia, inundavam as alas da pequena igreja, afogueadas pela correria, e pela adrenalina da salva de foguetes que media forças com os trovões do S. Pedro.
Gabriel era o oposto da figura de um anjo. Cabelos negros, escorridos para a cara pela força água, a tez morena, habituada à liberdade dos campos abertos, a opa branca enlameada até à altura dos joelhos, e as asas....as asas pingando em fio, deixando poças de água no chão de xisto cinzento escuro da igrejinha.
Ainda assim, ele sentia-se grande, as costas doridas do peso, as fontes a latejar de dor, a garganta cheia de espinhos, os pés a chapinhar dentro das botas de lama...e ele sentia-se grande!
Nunca como naqueles tempos felizes e distantes ele estivera tão perto do seu querer. Nunca estivera tão certo de poder voar, como quando a mãe lhe colocava, com um sorriso seguro, e as mãos macias, as asas de penas brancas.
Agora, hoje, sentia a realidade apertar-lhe a garganta, ao ponto de ser doloroso até o acto de respirar.
Sabia-se de mãos atadas atrás das costas. Aquele apartamento para onde voltava todas as tardes depois do trabalho na repartição, estava a ficar cada vez mais tacanho, e mal podia mexer-se ali.
Há anos que se mudara para a cidade. Só com o pai. Fora pouco tempo depois da mãe ter morrido às mãos de uma doença má.
Para Gabriel a cidade era um nó que se cingia mais e mais a cada passo dado. Muito diferente da largueza do campo, da liberdade das corridas nas ruas da sua aldeia.
Mas tudo isso ficara longe. Lá atrás, há muitos anos.
O pai era homem de poucas palavras. Fora sempre assim. Era um homem fechado, não o conhecia de todo.
Gabriel só queria voar dali para fora.
Por muito que a cidade o limitasse, não tinha conseguido tirar-lhe a capacidade congénita de querer voar. Passava horas à janela. Aquela janela de sacada era a parte mais entusiasmante de toda a sua existência presente. Passava lá horas, sentado, ou de pé, a observar os pássaros. sabia de cor os fluxos migratórios, as espécies, as cores, as características de voo...tudo!
Agora, hoje, ali naquele 4º andar, à janela, na janela, tinha o mundo a seus pés, e sabia exactamente o que fazer. Tinha toda a sabedoria de anos e anos de estudo atento. Tinha a conjugação perfeita de saber e querer. A direcção do vento era a que esperava.
- Abre a porta! Agora! - a ordem soava num tom aflito, e a porta quase cedia aos murros e safanões. As paredes finas estremeciam, e a voz era agora rouca e de súplica - Por favor Gabriel, abre a merda da porta!
A porta cedeu no momento exacto em que Gabriel abriu os braços.
- Nããooooo !!!!!!! - o pai correu desvairado para a janela aberta na noite, agarrou-se às barras de ferro, onde um segundo antes Gabriel tinha apoiado os pés, e debruçou-se à procura do filho.
Lá em baixo a vida corria como sempre. Pessoas iam e vinham. As vésperas de Natal eram denunciadas aqui e ali pela quantidade de sacos, e pelos risos de excitação das crianças pequenas. A noite descia calmamente, e o burburinho de formigueiro do dia a dia, começava a sossegar aos poucos. Lá em baixo na rua o buliço evaporava-se.
O pai, de olhos esbugalhados de tanto procurar em vão, lentamente, endireitou-se, e sempre com as mãos nas barras de ferro frias, olhou o céu.
Nas antenas de televisão dos prédios em frente, alguns pássaros de passagem por estas paragens frias, preparavam-se para passar a noite.