Fechou as mãos na erva e deixou-se ficar ali, deitada. Completamente à mercê do sol de inverno.
A seu lado jazia o avental branco de cambraia, e os sapatos envernizados de botão.
Tinha soltado os cabelos. Sentia-se livre naquela cama verde e ainda orvalhada da manhã fria.
Lá dentro não tardariam a dar pela sua falta.
O almoço acabara de ser servido, e as raparigas da copa fariam o resto do serviço.
Era dia de festa, e o casarão estava cheio até ao telhado. Tinham chegado familiares de longe, amigos dos tempos de quartel do patrão, e até a antiga professora primária da senhora.
Fechou os olhos e uma vez mais sentiu as ervas tenras a ceder à pressão dos seus dedos.
Sorriu. Era puro deleite o que sentia. Fechou os olhos, sem pressas e deixou o sol entrar-lhe pelos poros cansados do buliço dos dias.
Chegara a Tia Maria Rita - soltou uma gargalhada - Oh meu Deus! como as cadeiras se encolhem perante a visão da opulência das nádegas da Tia Maria Rita!!!
E o avô Tomás?!! - deixava o riso correr livre - o avô Tomás peidava-se à mesa, e tossia ao mesmo tempo, para disfarçar! - era um prato o raio do velho! Não conseguia apagar a cara de espanto das rapariguinhas de serviço à mesa, quando à descarada o avô lhe enfiava a mão pelas saias acima.
Esperguiçou-se , e cada musculo seu acordou para a luxúria das ervas tenras. Abriu os olhos com esforço, e fechou-os logo em seguida. O sol estava baixo, como sempre, nestas tardes curtas de inverno.
Mentalmente imaginava a disposição da mesa. 34 lugares sentados! É obra! Tantas e tantas vezes tinha preparado a mesma mesa. A toalha escolhida sempre com muita antecedência pela senhora, que no próprio dia se arrependia e escolhia outra qualquer.
Os pratos de Vista Alegre, tão finos que dava medo olhar, quanto mais mexer! Os copos de cristal que segredavam melodias esquecidas, mal lhes tocavam. Era um prazer para os sentidos, um dia de festa no casarão!
A Tia Avó da Senhora, solteirona, septuagenária , devia estar sentada à direita do dono da casa, era uma exigência do próprio, para bem parecer à velha podre de rica e sem herdeiros que não a sua esposa.
Não pode conter outra gargalhada - a esta hora a D. Ana Maria Pimentel, era assim que se chamava a Tia Avó, já devia ter bebido dois ou três martinis bianco , e já teria agraciado toda a audiência com outros tantos sonoros arrotos!
O dinheiro na carteira daquelas pessoas era um salvo conduto para o disparate e para a falta de educação.
Respirou fundo. O ar estava impregnado de cheiros. Tinham servido uma canja de galinha gorda, e o aroma da hortelã a cair na panela saia pela janela da cozinha e invadia até as narinas mais incautas.
E depois havia o rosmaninho. No quintalão, ao redor de toda a parede do pombal, mimava-se um canteiro de rosmaninho branco. Era perto dali e aquela mescla de odores despertava-lhe sentimentos guardados em ténues baús.
Por detrás do pombal havia uma tangerineira, antiga e curvada, carregava-se de frutos avermelhados no principio do ano.
A folhagem tinha muitas vezes encobrido os seus encontros com o Senhor da casa...ele levava-a para aquele lugar, e sem perguntar de que cor era o céu ou o inferno, tomava-a, e ela dava-se à urgência de um amor feito a correr, e que deixava sempre um travo amargo na boca. Amargo como veneno.
Lá dentro talvez tenham já dado pela sua falta. Ou não.
Estremeceu. O sol estava a cair depressa na tarde, e ela não era dali. Já não.
Levantou-se. Deixou o avental e os sapatos de verniz sozinhos na erva quebrada e voltou ao seu lugar.
Lá dentro ninguém tinha dado pela sua falta.
Os dias tinham passado, contados pelos seus dedos, em mais do que uma volta, e ela já não era dali.
Abalou como quem paira.
Ficou na terra um travo amargo como veneno. O veneno que lhe tinha adoçado o sono, muitos dias entes daquele.