Sentia cada músculo das suas pernas. A subida era íngreme, e pedalar debaixo daquela chuva miudinha e pesada era ainda mais difícil .
Tinha enfiado o impermeável azul escuro, com riscas amarelo fluorescente, e saíra para a rua sem se preocupar nem um segundo, com o facto das calças do fato de treino irem ficar ensopadas nos primeiros 50 metros da etapa.
Saía sempre à mesma hora, um pouco antes das 7 da manhã.
Ver o sol nascer à sua frente, era um espectáculo que se recusava perder.
Hoje a manhã estava arisca para andar de bicicleta. Soprava um vento forte, e a chuva parecia milhares de agulhas a baterem-lhe na cara. Mal conseguia manter os olhos abertos, mas ao mesmo tempo sentia-se mais viva que nunca.
Àquela hora havia ainda pouco movimento neste tipo de estradas, secundárias. Um tractor aqui e ali, a assinalar a sua marcha lenta com a luz do pirilampo, a carrinha do padeiro, que já ia na segunda volta a distribuir pelas aldeias da vizinhança, o autocarro que levava as crianças das redondezas até às escolas da vila, e pouco mais.
Tinha escolhido, uma aldeia perdida no sul do país, para fugir a uma vida de correrias, de metas por objectivos, de solidão consentida pela religião do dinheiro e da carreira.
Pareciam palavras vãs, mas pelo menos para ela tinham sido motivos mais que válidos para a fuga.
Fuga. Podia chamar-lhe assim. Aliás não podia ser de outra forma.
O apartamento mobilado, a quota no escritório, o companheiro de cama. Partira sem aviso.
O que era ontem, hoje deixara de ser.
Tinha finalmente apanhado a curva da encosta. Agora tinha uns bons 2 km de recta, poderia dar descanso à pernas. O dia estava a clarear, e a chuva a enfraquecer. O vento porém soprava cada vez mais impiedoso.
A temperatura descera bastante durante a noite, apesar da chuva. Tinha as pontas dos dedos geladas, e por momentos odiou-se por ser tão distraída e não ter levado umas luvas.
Tirou as mãos do guiador, esfregou-as uma na outra e colocou-as em concha junto à boca, de modo a soprar-lhe uma baforada de ar quente.
Caramba! Estava mesmo um gelo. Sentia os pulmões picarem, e o coração bater a um ritmo acelerado. Tudo aquilo era a vida dela, a vida nela, a vida que ela na cidade grande não tinha conseguido descobrir dentro do seu ser.
Começavam a ver-se pequenas abertas no céu. Aqui e ali, rasgos de um azul eléctrico apareciam do nada e prateavam os riscos deixados pelos aviões.
Junto aos troncos das árvores permanecia ainda uma névoa ténue e húmida , que mesmo à luz do dia desenhava contornos esquivos e indecifráveis por entre os ramos.
Pedalava com quanta força tinha, para afastar da cabeça as contas que de vez em quando ainda deitava à vida. Sentia a pele da cara a arder. Os lábios, era certo , iriam estalar, ao mínimo gesto.
Nunca se lembrava de passar o creme. Era um creme caro. Tinha-o trazido da outra vida. Sabia que era por isso que relutava em usa-lo.
Levantou a mão para acenar a um pastor que conhecia dos seus passeios matinais, e abriu um sorriso e um amistoso bom dia. Sentiu de imediato o sabor quente e doce do seu próprio sangue. Já sabia! Devia ter posto o batom do cieiro, ou a porcaria do creme. O lábio estalou, e agora ardia mais ainda.
Era sempre efusiva e simpática para os habitantes dali. Já todos a conheciam, e não se podia queixar de ser mal aceite, nem nada parecido.
Mas também não a olhavam como um dos seus pares . Era uma forasteira. Com usos e costumes muito diferentes das gentes dali.
Aquilo da bicicleta....Os calções curtos pra correr... Os olhos pintados...
Por vezes mais que uma forasteira, olhavam-na como uma alienígena . Isso divertia-a, mas também a incomodava. Sentia-se num limbo. Não era da cidade. Mas também não era dali. Não se encaixava em lugar nenhum. Questionava-se se não seria um pouco assim, com toda a gente?
Sabia bem que não.
Aquelas pessoas eram daquele lugar. Tinham raízes ali, e olhavam de viés e com estranheza as suas atitudes.
O vento estava incansável, mas o sol aparecia a tempos, a descoberto das nuvens de um cinza chumbo carregado, que ameaçavam o dilúvio ainda antes da hora de almoço. Estava um daqueles dias de muitas caras, como algumas pessoas, chorava e sorria, conforme a vontade do vento, e lá ia consumindo as horas e as forças dela na pedaleira.
Tinha chegado à estrada nacional. Agora era fazer o caminho de regresso, mais 8 kms , e com sorte antes da chuva estava abrigada em casa.
Pelo menos hoje não tinha nada que fazer. Não havia compromissos, horas marcadas, pessoas à espera, decisões pendentes. Nada. Só a casa vazia à sua espera.
O dinheiro estava a dar as últimas, e tinha que ser célere em arranjar uma ocupação rentável naquele fim de mundo. Engraçado como sempre que falava de trabalho, não conseguia evitar referir-se ao seu refugio no campo, como "o fim do mundo"...
Se tinha saudades do que tinha ficado lá atrás? Soltou um suspiro e empenhou-se em pedalar, como se o tempo se estivesse a extinguir agora, neste mesmo instante.
Na berma da estrada, as vinhas, com as suas hastes vermelhas, ainda despidas de parra, despertavam para a vida, para um novo ano de caudais abundantes. As amoreiras, na curva do monte, essas estavam tal como ela... sorriu, e num gemido sentiu o lábio estalar de novo. Estavam nuas. Vivas, é certo , mas num abandono e solidão de fazer doer o coração. Até os ninhos, lá no alto, no meio dos ramos estavam vazios. Ela também estava vazia.
Uma pega fez um voo rasante mesmo à sua frente. Um rato, ou outro bicharoco qualquer, de certeza !
O sol já mal se via, e as nuvens tinham tomado conta dos céus. Um autentico motim. Ainda faltavam mais de 2km , e já estava arrependida da extravagância deste passeio. Sentiu falta do escritório, com aquecimento central, e colaboradores à sua disposição o dia todo. O cheiro do café quente, a chuva a bater nos vidros duplos das janelas, as árvores lá fora a vergarem-se à força do vento!
Pedalou sem descansar. Não se permitiu olhar nada que não fosse o fim da estrada. Ainda não tinha tido o desprazer de apanhar com uma tempestade daquele calibre em cima de si! E não ia ser hoje!
Tinha recomeçado a chover. Mas não era aquela chuva miudinha da madrugada. Eram gotas grossas e cheias, vindas propositadamente para a castigar. Que raio lhe tinha passado pela cabeça para sair num dia assim! O vento era de tal ordem, que tinha agora dificuldade em equilibrar-se em cima da bicicleta.
Na boca misturava-se o sabor da chuva insonsa com o doce do sangue húmido nos lábios gretados.
Gotas de suor escorriam-lhe nas fontes, ou seria só chuva?
E o que era aquele sabor salgado?
Não! Não podia estar a chorar agora! Ela raramente chorava.
Pedalou, enraivada com o momento de fraqueza. Não tardou a ver o telhado avermelhado da casinha que tinha alugado. Era ainda fora da aldeia, tinha preferido assim. Prezava muito a sua privacidade. Tinha tido casos, paixões, desvarios, mas jamais tinha baixado a guarda.
Ela era una. Um circulo. Um forte.
Jogou a bicicleta contra a parede debaixo do alpendre e largou o impermeável, no chão.
Meteu a chave na porta, e entrou, deixando poças de água à sua entrada.
Descalçou os ténis e mandou-os porta fora.
Despiu-se pela sala, a caminho da casa de banho. Tomou um banho quente e rápido, vestiu um pijama, e foi para a cozinha.
Preparou um chá, e enquanto esperava a água ferver, perdeu-se na chuva que continuava a fustigar o dia.
Estava sozinha . O silêncio dentro de casa era tão grande, que teve vontade de tapar os ouvidos. Mas não o fez, claro! Era uma estupidez, pensou, abanando a cabeça.
Sentou-se, sem nunca tirar os olhos lá de fora.
Talvez fosse a chuva, ou o frio, ou o chá quente, mas deu consigo a pensar como seria ser de alguém?