A
A rapariguinha olhava a margem da baia. Despreocupada, as mãos bem enterradas na areia molhada abriam e fechavam como que a tomar o pulso á calmaria da manhã. Apesar de Setembro já bem entrado, o mar estava quieto, acomodado na cacimba que a madrugada destilara no sono.
Havia pouca gente na praia. Os veraneantes escolhiam preferencialmente o mês de Agosto, mais quente. Eles iam sempre no final do Verão. Era mais económico. Família grande, cinco filhos. Virou-se para trás por um momento. Os outros continuavam na conversa em frente do toldo riscado, que alugavam à quinzena. A mãe lia uma revista dessas que falam da vida das pessoas da televisão, alheada do grupo. Os dois irmãos mais novos, iam alimentando as quezílias do costume, enquanto os mais velhos faziam planos com o pai para uma caminhada até à foz do rio que desaguava na baia.
Eram quase 10 da manhã, e a ansiedade tomava conta dela. Levantou-se e desceu um pouco, até à rebentação. As ondas vinham suaves, sem pressas. Recuou quando sentiu a água gelada. Ali a água era sempre tão fria. Abraçou-se num arrepio. Ajeitou a alça do fato de banho branco de algodão turco, com pequenas ancoras bordadas em azul marinho. A julgar pelos elásticos lassos, podia ver-se que tinha pulado gerações até chegar ao corpo seco e bronzeado da rapariga.
Finalmente avistou a mulher dos bolos. Esta era diferente de outras que faziam ali a praia da Vila. Caminhava calada. Uma trouxa de pano no cimo da cabeça, e apoiada nela a caixa de metal polido com três gavetas.
Fez sinal com o braço no ar. Correu até ao toldo e voltou com uma moeda na mão. A mulher ajoelhou na areia, tirou a caixa e pousou-a em frente da rapariga. Abriu as gavetas, uma a uma, diante dos olhos esbugalhados. Sentiu a língua explodir em milhares de gotas de água. Era todas as manhãs a mesma coisa. A indecisão. O cheiro era uma coisa do outro mundo. Aquele contentor de alumínio, era o portador de toda a felicidade do mundo. As bolas de Berlim, roliças, envoltas em dulcíssimo granulado e cheias de creme de ovos, os pasteis de nata, de massa crocante e creme tostadinho com um toque de canela. hummm, cerrou os olhos. Optou por uma almofada de pão doce recheada de chantilly, polvilhada de pó de açúcar e fios de ovos.
Se tudo fosse tão simples como aqueles momentos. A mãe dizia que ela era estranha, o pai achava que ela era apenas diferente dos outros filhos. Os irmãos passavam a vida a chamar-lhe anormal. Se ao menos a deixassem em paz, como agora. Se pudesse, comia daqueles bolos o dia inteiro, e depois nadava até lhe doer o corpo todo, e os lábios ficarem roxos. E depois dormia. E não precisava de dizer nada. Afinal as pessoas falam porquê? Lambeu o último bocadinho de chantilly do canto da boca, e chupou os dedos um por um. Os irmãos por exemplo, só diziam parvoíces. Correu até ao toldo, agarrou um balde plástico encarnado, e foi apanhar conchas.
B
Verificou a casa de banho. Nada. Tinha guardado tudo. Apanhou os pequenos sabonetes, os frasquinhos redondos com shampoo e gel de banho. Abriu o necessaire e deitou tudo lá pra dentro.
Verificou só mais uma vez o roupeiro, e espreitou pra baixo da cama. Parece que não tinha esquecido mesmo nada. Riu-se de si mesma. Que estupidez. Tinha alugado o quarto só por essa tarde. Nem sequer tinha trazido mais nada além da pequena mala com os produtos de higiene. O recepcionista tinha levantado a sobrancelha ligeiramente, quando ouviu que era só para a tarde. Deve ter pensado em encontros escaldantes, estórias de amantes e traições. Redondo engano. Era apenas um rendez-vous com ela mesma. Tinha poucas oportunidades para o fazer. Estar sozinha. Crescer e viver numa casa cheia de gente tinha facilitado o recato do seu ser. Andava sempre toda a gente ocupada com alguma coisa, era portanto mais fácil estar só. No meio da confusão do entra e sai de gente, sentia-se muitas vezes felizmente invisível. Depois mudou tudo. O pai saiu de casa a salivar atrás de uma rapariga esperta com metade da idade dele, que o fez comer o pão que o diabo amassou e depois lhe pôs um valente par de cornos com outro qualquer parvalhão de meia idade e bom emprego. Não voltou mais pra casa, até porque a altivez da mãe jamais o permitiria. Os irmãos mais novos foram estudar pra fora, num desses intercâmbios universitários. A irmã, a mais velha dos cinco, ía insistentemente no terceiro casamento. Além de estúpida era uma romântica desconcertante, e o drama era a vida dela. O irmão mais velho seguira rumos errantes. Um aventureiro, sem casa, sem laços, e ao que parece sem raízes. Havia já mais de quatro anos que não havia notícias dele. A ausência de vida na casa de família foi o gatilho que disparou e lhe encheu a existência de ruídos impossíveis. A mãe estava mais que morta naquele deambular oco de sala em sala. Arrumava os quartos para os filhos que nunca vinham. Limpava o que estava limpo, dia após dia. Tinha-se tornado penoso viver aquela vida em que era agora visivel. Todos os movimentos detectados pelo radar da mãe, todos os passos contados. Não sabia conviver com a visibilidade da sua pessoa. Depois da casa se esvaziar ela procurou refugio nestas escapadas Hotéis, residenciais, pensões. Umas horas de silêncio a soldo. Estendia-se na cama, fechava os olhos. Normalmente não era difícil encontrar-se. Sorria no reencontro. Mesmo depois dos trinta, mesmo depois do curso, depois de um namorado, um estranho que se dava ares de intelectual, e a achava esquisita. Mesmo agora, não se sentia muito diferente de quando era miúda. Sem compromissos, horários, pessoas, conversas. Cada vez achava as palavras mais dispensáveis. Uma vez, não muito longe, tinha chegado a ponderar silenciar para sempre este seu ser insatisfeito, incompleto. Mas teve medo. E se no momento exacto chamar por companhia. E se me apetecer falar. E se a dor, aquele momento de dor que antecede o fim, não me deixar partir sozinha. Desistiu. Fechou a porta atrás de si e voltou pra casa.
C
Apertou as mãos uma contra a outra. A igreja estava quase vazia. Era a hora da sesta, e Agosto tinha chegado numa baforada de calor africano. Ali dentro estava fresco. E havia um silêncio redentor. Não queria rezar. Uma mulher velha e curvada varria o acesso à sacristia. Um lenço negro na cabeça, atado por baixo do queixo num nó firme. Não conseguiu evitar uma pontada de pena. A velha tinha umas mãos tristes, cheias de nós. Conhecia-a de vista. De toda a vida. Tinha chegado há muitos anos, já enlutada, o lenço, o nó firme. Ninguém sabia de onde tinha vindo, quem tinha perdido. Era uma mulher soturna. Sempre metida consigo mesma. Calada. Quando passava na rua, deixava um rasto de prantos no coração das pessoas. Olhou as suas próprias mãos. Seriam também mãos tristes? Estavam cheias de nós. A idade tinha avançado sem clemência. Tinha-a povoado de recordações. Estava cheia de gente, de gente que falava. Há uns anos começara a entrar naquela igreja, todos os dias, logo depois do almoço. Não rezava. Não era companhia que procurava. Era o silêncio. Em sinal de respeito, à entrada do templo, todo aquele burburinho de gente cessava. Nunca fora amante de palavras, e pra falar verdade, nunca gostara muito de pessoas. Parecia-lhe um pouco ridículo, mas aquela velha amortalhada de negro, curvada, de mão tristes inquietava-a. Seria assim o silêncio perfeito? Não queria rezar, eram palavras e as palavras eram supérfluas.