I
António era pastor. Rapaz alto e seco como o sol de Agosto, mas robusto como as rochas onde descansava das noites perdidas. António era pastor, mas conhecia de cor, todos os carreiros de estrelas que o céu brandia, e todas as constelações de insectos que com ele partilhavam espaços. As noites eram de descoberta para ele, a escuridão da planície era uma aventura renovada a cada pôr-do-sol. Colava os olhos no infinito dos céus, e baptizava pontinhos que só ele via, com nomes que só ele sabia, que tinham estórias que só ele podia contar. E contava. Contava estrelas e contava estórias todas as noites. Discursava para um público de cornos e olhos vazios, que ruminava de mansinho o pasto sem fim. E sonhava com alguém que o ouvisse, e questionasse, com alguém que o pusesse à prova, que olhasse embevecido para as suas estrelas, como ele olhava... Mas a Tidinha não era assim.
II
Matilde, Tidinha pelo amor de uma mãe solteira de muitos homens, era bordadeira. Rapariga bonita, vaidosa. Corava ao sentir queimar nela o olhar dum macho, mas deixava sempre uma réstia de sorriso no caminho, como uma promessa que fica à espera de ser paga. Tidinha era bordadeira. Os dedos picados denunciavam a falta de virtuosismo para o assunto, e o olhar sempre preso entre o sonho e a vida, não se detinha no bastidor por mais que um ponto de cada vez. Sonhava com o António, os braços do António, o peito do António, as noites fugidas pelo meio, quando o povo todo respirava mais devagar, as noites salgadas do suor do corpo do António a cobrir o seu... As vontades que lhe subiam pelas pernas acima, quando o via, quando o ouvia falar de coisas que ela nem fazia ideia. não fazia ideia, nem queria fazer. Ela queria o António, ali, no pasto, deitado com ela, a dizer-lhe segredos que a espicaçavam ainda mais.... A Tidinha amava o António. O Manel também.
III
O Manel era caixeiro. Trabalhava na loja da Praça. Fazia embrulhos como quem borda quimeras. Vendia bons dias, e sorrisos francos a troco de escárnio e desconfiança. O Manel era delicado como as primeiras chuvas de Outono, andava no mundo ao avesso dos outros, e lia nos livros sobre as estrelas do António. Lia sobre a estrelas e chegava assim, pertinho do calor do outro. Esperava com o peito em ventanias, os dias que o António vinha à vila e deixava as cabras aos olhos do pai. Nesses dias até o Manel enchia a coragem e bebia uma ou duas cerveja com os homens na tasca. E no meio deles, era certo ganhar um toque furtivo. Uma palmada nas costas, um aperto de mão... às vezes até uma palavra que agarrava com as duas mão e guardava dentro para ouvir à noite. E depois, já cheio do amargo do álcool e dos risos, ficava lá fora, encostado à esquina, a ver o António e a Tidinha fugirem para o pasto, a brincar com o fogo dos corpos. O Manel ficava só. A olhar as estrelas do António, a decorar-lhe a voz, o corpo a soluçar por perder o que nunca teve. O Manel vivia como quem morre, e numa dessas noites cheias do vazio que a partida do António deixava nele, desejou ser uma estrela.
Originalmente publicado neste blog em 31 Agosto 2007
Gostei bastante desta história, que retrata tão bem a forma como andamos muitas vezes desencontrados... procuramos o que está à nossa frente e não vemos, suspiramos por quem nem nos vê, imaginamos o outro como nós, ignorando como é de facto... amamos quem ama outro... somos amados por quem não queremos de todo... :)Beijinhos de quem voltou para ficar!
Um regresso ´´e sempre um feito a celebrar, especialmente de uma pessoa como tu, com tanta aptencia para a comunicaçao e para a escrita. Gostei q tivesses dado um pulinho ate ca. Beijinhos e obrigada
De
sandra a 10 de Abril de 2011 às 04:01
A ternura é um momento muito especial entre as pessoas.
Lindo o texto. a interação de Amigos tbém está participando.
http://sandrarandrade7.blogspot.com/
São momentos que tracamos as ideias..
Um grande abraço,
Sandra
De
Pinguim a 7 de Abril de 2011 às 17:47
Adorei este teu texto.
E acho uma coincidência teres publicado esta história na mesma altura em que deixei no meu blog uma postagem, que não sendo, obviamente sobre o mesmo assunto, tem bastantes pontos comuns.
vou ja ja ver o que la deixaste :DD
este texto como podes ver ja tem uns aninhos, mas tenho muita ternura por ele, dai que me lembrei de fazer a re-postagem.
Beijo grande
De
Briseis a 13 de Abril de 2011 às 11:25
Gostei tanto, tanto...! São pessoas extraordinárias, as que criaste. E que linda a forma como escolheste apresentá-las e narrar a sua história! Alguma vez leste Pina de Morais? Escritor duriense, ele escrevia de forma semelhante... =)
Muito obrigada :D
Nunca li Pina de Morais, mas ainda assim fico babada.
Beijo
De
Bento a 15 de Abril de 2011 às 00:37
Gosto do ritmo em crescendo, do entrelaçar das histórias no conjuno final do texto. Gosto do tom da narrativa numa escrita , definiitivamente , consolidada e que nos traz excelentes surpresas de post para post...
Obrigada Bento, ´´e sempre um prazer receb^^e-lo aqui. Beijo.
De
José a 15 de Abril de 2011 às 11:35
Um triângulo "desamoroso"!
Estrelas estreladas e um Manel "estatelado". Caidinho de amores, vivendo no mundo das estrelas, de muitas luas, de poucas ruas percorridas, de campos de macela amarelada,
cama de amores olhando estrelas.
E o Manel... olhando traves, contava carneirinhos, contava adormecer num campo de estrelas e ter a ventura da Tidinha: - Ser picada de vez em quando, não pela agulhina de bordados, mas seta cupidal bordando a sangue o seu corpo, com chagas de amor carente.
E o António... sempre ausente!
De
Catsone a 16 de Abril de 2011 às 23:02
Mel, sem querer exagerar, mas já há algum tempo em que não lia algo que me desse tanto prazer. Fiquei verdadeiramente impressionado com este pedaço de literatura tão terna e "escarniosa" ao mesmo tempo. Sem palavras.
Bj.
Cat, e eu fiquei verdadeiramente babada :DD
Obrigada e beijo grande
O seu comentario por si so ´´e ja pura poesia!!!
Caramba :DDD
Beijinhos e muito obrigada
De
João a 18 de Abril de 2011 às 22:27
Apesar de já ter isto aqui há muito tempo por ler, espero que o meu comentário ainda seja aceite.
Ainda por cima, só para dizer que eu também gostei.
Tá dito.
... Mas não quer dizer que o Manel fosse o certo para o António. Podia não ser, mas o que mais há na vida são pessoas a suspirar por outras... inconsequentemente. Resta-lhes a esperança, como uma luz que os encaminha e sustém.
xa ca ver.....hummmmm aceito, ok!
E sim a vida esta cheia de encontros e desencontros bla bla bla
beijo
De Anónimo a 21 de Abril de 2011 às 20:49
Como sempre, adoro o que escreve.
Muito ternurento!
Muito obrigada quem quer que sejas ;D
De
soninha a 26 de Abril de 2011 às 06:27
Muito show!Muitos aplausos.bjs
aplausos e tudo?eheheh
Obrigada Soninha e beijinhos
Garota voltarei. Beijinhos
Que se estará a passar nesta blogsfera? Todo o pessoal que conheci no meu inicio está a afastar-se? Vamos lá minha Linda actualizar isto. Adorei e esta frase, O Manel vivia como quem morre, resume o vida do Manuel. Beijinhos
Como me escapou esta? Excelente mais uma vez. Beijinhos
Não consigo acertar nestas letras. Se calhar este comentário nunca te vai chegar.
zumbir