Lembrava-se daquele dia com a mesma naturalidade com se esquecera de todos os outros.
Lembrava-se como do pelo do gato a insinuar-se por debaixo dos seus dedos, agora, naquela tarde fria e longe.
A euforia do sangue a correr dentro dela e a consciência pura da sua existência como corpo vivo, eram agora lembranças em cores pastel, em cores esbatidas como os dias que desde então passaram em frente do seu olhar.
Naquela vez, como em todas as outras, a noite deu lugar ao dia.
A noite tinha estado fria, de um esmalte fino e cortante, ponteada aqui e ali de luzes baças, e, exactamente duas horas antes do previsto o sol apareceu no céu.
Apareceu. Não houve madrugada, ou nascer do sol, ou laivos vermelhos de amanhecer. Nada!
Apareceu como uma visita que não se espera, pelo menos, não ainda.
Por todo o lado havia seres estremunhados, que saiam à rua, numa procissão sem precedentes. Olhos postos no céu, cegavam, com tamanha pujança de luz solar.
Tinha resistido à tentação de sair de casa, tinha feito pouco caso daquele astro que crescia do lado de fora de portas e janelas. Continuou a dormir um sono acordado pela claridade.
Já não se lembra bem como, nem tem já a exactidão de quando. Mas aconteceu.
A porta abriu-se com a força de uns braços curtidos por outros raios de sol. O silêncio que se fez estremeceu as paredes de cal branca, os olhos encontraram-se, e viram o mundo a arder dentro daquelas paredes, mais do que ardia lá fora.
As cortinas pequenas não eram já cortinas, mas tristes rodilhas de pano retorcidas pela acção de um calor imemorável. Não se lembrava já se tinha sido o sol do céu, ou as chamas dos lençóis , que as tinham queimado.
E quando as paredes cederam aos tremores, e o mundo ruiu, numa derrocada de labaredas, ela sentiu-se presa à vida por um fio.
Lembrava-se, com o coração em brasas mornas, daquele dia fruto de uma noite insegura, que acabara antes do tempo.
Imagem de João Palmela